terça-feira, 13 de maio de 2008

O Dzogchen na Tradição Bön (parte 2)

por: Tenzin Wangyal Rinpoché*
O Dzogchen no Bön e nos Nyingmapa
Vimos que o Dzogchen é comum ao Bön e ao Budismo Nyingmapa, e que estas duas tradições espirituais também têm em comum uma divisão em nove partes, dos seus caminhos ou modos de observância religiosa. No entanto, existem diferenças principais entre a respectiva divisão em nove caminhos dos Bönpos e dos Nyingmapas. É digno de nota que existem seis, e não nove, graus de prática nas outras escolas de budismo tibetano — Kagyüpa, Sakyapa e Gelugpa, que aderem à nova tradição, (Sarma) das traduções posteriores do cânone budista, levado a cabo durante a segunda difusão do budismo no Tibete, durante os séculos X e XI. Os nove caminhos do budismo compreendem apenas material budista tradicional e falando estritamente (como o Professor Snellgrove demonstrou), os dois caminhos inferiores, pertencentes ao budismo Hinayana, são praticamente irrelevantes na prática religiosa do budismo tibetano, que está assente no budismo Mahayana.

Por contraste, os nove caminhos dos Bönpos, bem como práticas de origem budista, compreendem a envolvência total dos costumes, crenças e práticas religiosas indígenas tibetanas, incluindo a ciência médica, a astrologia, a cosmologia, sortilégios e predições, pacificação e exorcismo de poderosos espíritos malévolos e fantasmas, ritos para a prosperidade e ritos tântricos de destruição de inimigos, resgate e orientação dos mortos, disciplina moral para praticantes leigos e monásticos, práticas e ritos tântricos, hagiografia e mais elevado caminho espiritual do Dzogchen. A este respeito, pode ser dito que o Bön é a verdadeira religião do Tibete, envolvendo ambas as observâncias religiosas autóctones e as importadas.

Existem, também muitos pontos em comum entre o Bön e o budismo Nyingmapa. Como mencionado, ambas sustém e propagam de modo oficial a transmissão dos ensinamentos do Dzogchen, que são encontrados apenas esporadicamente em indivíduos dotados, praticantes das outras tradições tibetanas que não possuem linhagens específicas, de mestres de Dzogchen. Ambos veneram Küntuzangpo (sânsc. Samantabhadra) como o supremo Adibuddha primordial, enquanto as outras três escolas do budismo tibetano, veneram Vajradhara como o Adibuddha; e ambos têm uma tradição de terma, tesouros espirituais escondidos e redescobertos por tertöns (personagens profetizados para revelar o tërma em tempos propícios). Na verdade, muitos tertöns famosos pertenciam a ambas as tradições.

Além disso, os Nyingmapas são os únicos budistas tibetanos que reconhecem abertamente como budistas os ensinamentos de origem não indiana que foram propagados durante a primeira introdução do budismo no Tibete, durante o reinado de Songtsen Gampo, e posteriormente no século VIII pelo carismático mestre Padmasambhava e seus associados. Estes ensinamentos incluem correntes de ensinamento budista vindos da China e da Ásia Central, bem como da Índia. Na segunda difusão do budismo no Tibete, nos séculos X e XI, todos os ensinamentos budistas aos quais uma origem indiana não pudesse ser identificada foram excluídos do cânone budista tornado oficial pelas outras três escolas posteriores do budismo tibetano. Os Bönpos afirmam que o Buddha Shakyamuni foi um discípulo de Tönpa Shenrab Miwoche e que todos os ensinamentos budistas, originados na Índia ou em qualquer outro lugar, são de facto ensinamentos do Bön eterno.

As Três Correntes de Dzogchen no Bön
No Bön, o Dzogchen tem sido tradicionalmente divido em três correntes conhecidas coletivamente como A-Dzog-Nyangyud (tib. a rdzogs snyan rgyud), isto é, Ath'ri, Dzogchen e Zhang Zhung Nyangyud. As duas primeiras são tradições tërma, baseados em textos redescobertos, enquanto a terceira é uma tradição oral baseada na transmissão contínua por uma linhagem ininterrupta de mestres.
O sistema Ath'ri foi fundado no século XI por Dampa (Homem Sagrado) Meu Gong Jad Ritro Chenpo (1038-1096), que extraiu o ensinamento original do ciclo de ensinamento Th'rögyüd (tib. khro rgyud) de Tönpa Shenrab.

Literalmente, Ath'ri (tib. a khrid) significa "Guia do A". A letra A representa o estado primordial não condicionado, o estado natural da mente; e é branco para representar a pureza inata da mente. O praticante envolve-se na prática de Zhiné, começando com fixação usando a letra tibetana A para enfocar a concentração, afim de desenvolver “insight” e experiência do estado natural da mente. Isto corresponde à série Semde do ensinamento de Dzogchen da tradição budista Nyingmapa, ligada à mente.

O nome Dzogchen (tib. rdzogs chen) dado à segunda corrente, não se refere ao Dzogchen em seu significado geral, mas em vez disto denota um tipo particular de ensinamento Dzogchen, com sua própria linhagem específica. Este sistema corresponde à série Longde no Dzogchen Nyingmapa, ligado com a claridade e o espaço.

A terceira corrente, compreende os ensinamentos de Dzogchen do Zhang Zhung Nyangyud, a Transmissão Oral de Zhang Zhung, a mais antiga e importante tradição Dzogchen e sistema de meditação no Bön. Esta série de ensinamentos foi sistematizada pelo mestre de Zhang Zhung, Gyerpung Nangzher Lödpo, que os recebeu do seu mestre Tapihritsa, no VIII século. No entanto, como iremos ver de seguida, estes ensinamentos não foram compostos pelo seu fundador humano; eles não foram fabricados pelo pensamento, mas são auto-originados. Eles têm desfrutado de uma transmissão contínua, através de uma "linhagem longa," ao longo dos séculos e nunca teve de ser escondida e redescoberta como um terma, o qual teria uma curta ou transmissão directa, desde o tempo, da sua revelação. Esta corrente de ensinamentos, corresponde às séries Upadesha no Dzogchen Nyingmapa, a série de instruções secretas.

Apesar destas três correntes de Dzogchen terem suas próprias práticas preliminares e linhagens de mestres de transmissão, a essência e o propósito de todas as três é o mesmo: a introdução ao estado natural do Dzogchen. Alguns mestres de linhagem detêm todas as três transmissões. No Tibete, esta transmissão de mestre a discípulo, que por sua vez se torna o mestre que transmite os ensinamentos ao seu próprio discípulo, é chamada "quente" devido à transmissão pessoal da experiência directa a proteger, assim permanece viva, sem se tornar algo frio e meramente intelectual, derivado de livros e de pensamentos conceptuais.